Alejandro Vigil é um dos nomes que definem a produção atual de vinhos na Argentina. Sua maneira descomplicada de ver a viticultura, em contraste com a complexidade do que produz, faz de Vigil um ídolo pop para os apaixonados pela bebida. Enólogo chefe da Catena Zapata, uma das principais vinícolas de Mendoza, em maio desse ano, o conceituado crítico norteamericano James Suckling deu nota máxima – 100 pontos, pontuação que significa perfeita – para um malbec produzido por Vigil: o Catena Zapata Fortuna Terrae 2012.

Ale Vigil

Em 2015 criou com Adrianna Catena (filha de Nicolás Catena, dono do império Catena) a bodega Casa El Enemigo – onde produz vinhos de alta gama e recebe os visitantes para degustações e almoço com opção de harmonização.
A bodega é inspirada na Divina Comédia e fica em Chachingo, na localidade de Maipú, onde ele também mora com a esposa, María Sance, e os filhos, Juan Cruz e María Giuliana.

Mendoza El Enemigo Ale Vigil - 20

Sempre conectado às redes sociais, foi através de um contato pelo Instagram – Ale começou a me seguir e aí disse que gostaria de entrevistá-lo – que recebi o convite para conhecer o restaurante e a vinícola. Encontrei um Alejandro Vigil de jeans e camiseta, recebendo a todos como velhos amigos. Mas não se engane com o jeito despojado: Vigil tem inteligência e sagacidade invejáveis e sabe tudo que acontece à sua volta e nos seus negócios. E não tem medo de dizer o que pensa.

SARA: O consumo do vinho está se popularizando?

VIGIL: Mudou a forma de comunicar o vinho. Quando você parte da ideia de que “desse vinho eu gosto, desse vinho não gosto”, essa comunicação fica mais fácil. Quando se permitiu dizer isso, tudo mudou. Antes, se dizia “Ah, o vinho sempre é bom”.

SARA: No Brasil há a discussão sobre maneiras de tomar o vinho. Com gelo, por exemplo.

VIGIL: Eu gosto de vinho com água com gás.

SARA: Pode?

VIGIL: Claro. Se tenho sede, ponho água. Aos domingos, tomo vinho com soda.

SARA: Qualquer vinho?

VIGIL: Sim. Algumas pessoas se aborrecem com isso. A mim, não importa. O vinho precisa ser tomado como se gosta. Se você permite essa situação, de que cada um beba como preferir, aos poucos o vinho vai te levando, vai te sofisticando.

O vinho é “culturizador” – ele trata da dignidade do homem. É um trabalho artesanal e gratificante. O vinho não é uma profissão, é um ofício. Que pode ser transmitido por outro enólogo, pelo teu pai, pelo teu avô ou por quem seja. E ou você tem o “bichinho”, ou não tem. O vinho pode ser sua forma de ganhar a vida, ou sua forma de viver. No meu caso, é minha forma de viver. Eu faço vinho e quero que tomem. E sirvo.

SARA: Conta a história que você começou a fazer vinho com seu avô, aos cinco anos?

VIGIL: Ou mais jovem. Não sabemos direito.

SARA: Como foi isso?

VIGIL: Eu passava as férias na casa do meu avô em San Juan [província vizinha, segunda mais importante produtora de vinhos da Argentina, atrás somente de Mendoza]. No inverno, participava da poda. No verão, do cultivo, da colheita e da produção do vinho. Um outro tempo. Lembro da importância do almoço naquela época. Por isso faço, hoje, com que quem trabalha comigo pare para almoçar. E tome vinho durante a refeição. E que depois faça a siesta, que descanse uma hora. E depois volte a trabalhar. E se trabalha até uma da manhã, duas, três, quatro. Não importa. [Ale fala dos momentos mais trabalhosos da produção do vinho, como a vindima]. É no almoço que você comparte, conta o que acontece na tua casa, fala sobre o que você sente e o que não sente.

 

“Me transformei em um capitalista, fui da atividade pública à atividade privada”

 

SARA: Você tem dois mundos. Um de Casa Del Enemigo, e outro de Catena Zapata.

VIGIL: Eu trabalhava no LINTA [Laboratorio de Investigaciones del Territorio y el Ambiente, algo equivalente à Embrapa] e me chamaram para trabalhar na Catena. Me transformei em um capitalista, fui da atividade pública à atividade privada [risos]. Para meus amigos foi um golpe forte. Lamento um pouco. Gostava muito da investigação científica. Trabalhei quatro anos no LINTA antes de me formar na faculdade [Vigil é engenheiro agrônomo, que na Argentina autoriza o trabalho também como enólogo]. Aí fui convidado pela Catena para trabalhar lá.

SARA: As pessoas que levam seu vinho para tomar em casa, têm uma experiência diferente? O vinho muda com o lugar onde é tomado?

VIGIL: Meu sonho seria que não. Mas muda.

SARA: Seus vinhos têm pontuações incríveis.

VIGIL: Hoje já não me importo mais em conseguir pontuações. Mas é claro, as tenho [risos]. Engano a mim mesmo dizendo isso, porque se não tivesse seguramente ia tentar conseguir.

SARA: Você tem uma maneira peculiar de produzir seus vinhos.

VIGIL: Eu sou disléxico. Não consigo separar sílabas, por exemplo. Tudo para mim é memória. Eu sei que esse é Enemigo [pega a garrafa de vinho] não porque leio, mas porque lembro que é assim a palavra. Leio as palavras por memória. E para mim a memória é tudo. Isso se aplica ao vinho. Guardo os sabores, o tato, a textura. A dislexia, que poderia ser um problema, foi uma solução. Mas trabalhei muito minha constância. Estudava muito.

 

“Eu faço vinho, e é isso que me interessa”

 

SARA: Qual sua definição de terroir?

VIGIL: Terroir é muito difícil de definir. Escrevi há alguns anos: “a experiência centenária de cultivar um vinhedo e elaborar essa uva, desse vinhedo de um determinado lugar”. É a memória das pessoas.

Você tem formas distintas de ver a vida: “Eu sou” ou “eu venho sendo”. O capitalismo te faz pensar que você é. O vinho é “venho sendo”. Porque as modificações do vinho que acontecem em um ambiente acontecem junto com as modificações pelas quais o homem passa. Nunca separadas. Falar de uva e vinho é muito complexo. Do ponto de vista filosófico, é quase ideológico. Mas, ao final, é simples: duas taças de vinho. Uma, eu gosto. A outra, não.

SARA: Você fala bastante sobre capitalismo. A Casa Del Enemigo vem como um equilíbrio em relação ao seu trabalho como enólogo chefe na Catena?

VIGIL: Não. Eu faço vinho. Não importa onde, ou para quem. Eu faço vinho, e é isso que me interessa.

SARA: É uma grande responsabilidade, porque todos acompanham a qualidade dos vinhos de Catena no mundo.

VIGIL: A responsabilidade maior é que existem duas mil famílias que vivem disso [da produção da Catena Zapata] de forma direta. Não posso “dar um tiro no ar”, enlouquecer no que faço. É preciso fazer de forma correta. Nunca ponho Catena e La Casa El Enemigo em controvérsia. Porque fazem parte do mesmo sistema sustentável. Sabe o que acontece, no final, em ambos? As pessoas têm trabalho, têm emprego. Quando apresentei à Catena o projeto da minha própria vinícola foi fácil, porque me responderam: “Faça. Mas siga também conosco”.

 

Se me sinto pressionado, não me interessa mais a situação.”

 

SARA: Contam que você se transformou em enólogo da Catena quando Nicolás [Nicolás Catena, patriarca atual da vinícola, pai de de Adrianna, que é sócia de Vigil no projeto El Enemigo] pediu que fizesse um vinho especial para ele, e se apaixonou pelo resultado.

VIGIL: Sim, Nicolás Catena Zapata 2001 era o vinho.Eu estava trabalhando há dois meses na vinícola, mas em investigação de solos. Aí pensei – “Não vou perder nada se tentar”. Entenda: aprendi que devo fazer tudo com o mesmo ânimo, sem me sentir pressionado. Se me sinto pressionado, não me interessa mais a situação. Não me permite ser quem sou, não me deixa desenvolver como pessoa, como ente intelectual, como ser humano, como pai, filho, tudo. Não me deixa ser. A luta não é esconder-se, e sim como conseguir ser transparente. O mais difícil é isso.

SARA: Você é conhecido no Brasil como alguém que mudou o perfil hermético da enologia. Que faz vinhos divinos, mas que são próximos do consumidor.

VIGIL: Tenho amigos que ainda são um pouco rígidos, conservadores. Eu os entendo, porque têm uma formação. Porque vêm sendo, como disse antes. Não se pode pedir que sejam outra coisa.

Eu tive a condição divina que meus pais eram pessoas totalmente abertas, muito adiantados para o momento em que viviam. Eram os anos 60. Minha mãe, que já faleceu, era professora, diretora de escola. Mas escrevia poemas. Era sindicalista política, leitora apaixonada. Fumante inveterada. Meu pai era engenheiro civil e desenhista gráfico. É do Partido Intransigente [partido radical fundado na Argentina no início dos anos 70, já quase inexistente na atualidade], da esquerda da centro-esquerda. Todos incrivelmente pensantes e humanos. Isso tudo faz muito mais fácil ser como sou.

 

“O Brasil faz um bom Merlot, mas deveria investir na produção de Nebbiolo, por exemplo”

 

SARA: No Brasil, a cultura e a produção do vinho cada vez mais são vistas como importantes para reforçar e desenvolver a economia regional. O que você entende que falta para o Brasil chegar ao nível da Argentina na produção para o mundo?

VIGIL: Acho que o Brasil começou com um “pé” equivocado. Colocaram variedades que não são ideais para os locais onde estão sendo cultivadas. O Brasil faz um bom Merlot, mas deveria investir na produção de Nebbiolo, por exemplo [uva da região do Piemonte, na Itália, base de vinhos como Barolo e Barbaresco] no nível do malbec argentino. Ou Pinot Noir a nível de… bem, não quero ser exagerado, mas Borgonha. E nas partes de montanha, ou pendentes, vinhos como Gewurztraminer, Traminer [originário de  Jura, extremo nordeste francês].  Mas, o mais importante já foi feito – cultivar. Plantar. Agora se trata de buscar a cepa perfeita. Há um varietal que se chama Baga, que é plantada em Bairrada em Portugal. Essa seria perfeita no Brasil. O que creio que falta, voltando à pergunta, é a passagem do tempo. Tempo. Com o tempo, esse desenvolvimento virá.

SARA: Como o vinho brasileiro é visto na Argentina?

VIGIL: Não se conhece. Ou, se conhece muito pouco. Às vezes me surpreendo o pouco que conhecem os enólogos ou viticultores argentinos sobre o vinho brasileiro.

SARA: Qual o motivo desse desconhecimento, na sua opinião?

VIGIL: Ignorância. Eu estudo o vinho brasileiro porque um dos meus melhores mercados compradores é o Brasil. Preciso saber o que estão fazendo. Porque sei que vocês, mudando pouquíssimas coisas, alguns varietais, nos liquidam.

 

“A figura pop do enólogo é parte das etapas normais de desenvolvimento de uma indústria jovem. O enólogo não muda nada”

 

SARA: A figura do enólogo no mundo ganha força e importância. No Brasil muitos jovens buscam cada vez mais essa profissão, que está sendo muito destacada. Como você vê essa posição quase pop?

VIGIL: Aqui primeiro as empresas eram importantes. De repente, os enólogos viraram rock stars. Agora estamos voltando à ideia da importância do lugar onde se produz. Quando se olha em um processo de 500, 600 anos, para uma região como Borgonha ou Bordeaux, não pode dizer que foi um enólogo que foi o responsável. A região mudou, porque houve uma evolução. A figura pop do enólogo é parte das etapas normais de desenvolvimento de uma indústria jovem. O enólogo não muda nada.

SARA: O futuro de Ale Vigil, qual é?

VIGIL: Toda minha vida é fazer vinhos. Agora estou escrevendo um pouco. As pessoas estão insistindo para que eu escreva mais. Gosto muito de ler, especialmente Cortazar. Eu viveria escrevendo contos, muito contente. Escrevo muito. Tenho um blog (http://cosecha2012alevigil.blogspot.com.br) sobre vinhos [a última atualização foi em agosto de 2015, com um video onde Ale é ator e apresenta a bodega El Enemigo].

SARA: Você têm dois filhos que vivem na vinícola com você e sua esposa. Você tem esperança que eles sigam no mundo do vinho?

VIGIL: Plantei um vinhedo no dia que nasceu Juan. E com o tempo me dei conta que estava condicionando-o de uma forma tão grande que arranquei o vinhedo. Estava prejudicando meu filho, não ajudando. Não. Eu acredito que cada pessoa precisa encontrar-se. Os pais precisam ajudar a alimentar sua energia, sua qualidade de vida. Não se intrometer. Eu, como pai, cada dia entendo mais meus pais [Ale mostra os braços com o nome dos filhos tatuados, junto a nomes de uvas que representam a personalidade de cada um – Cabernet Franc, a Giuliana, e Juan Cruz, Malbec].

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SARA: Você me disse que não toma habitualmente seu próprio vinho. Por quê?

VIGIL: O vinho é um momento de prazer. Se eu tomo meu vinho, eu analiso. Critico. Penso o vinho. Aí tomo outro vinho e desfruto. Desfruto loucamente.

SARA: Qual teu tipo de vinho preferido?

VIGIL: É o vinho produzido em uma zona que se chama Jura [extremo noroeste francês], há uma cidade que se chama Arbois, onde tem o Vin Jaune, um vinho amarelo [vinho ancestral característico daquela região] das quais se fazem pouquíssimas garrafas. São muito artesanais, e entendo que não é a todo mundo que agrada. Mas, quando você já visitou esse lugar, é só tomar uma taça desse vinho que se transporta de volta para lá.

SOBRE EL ENEMIGO:

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A bodega produz sete vinhos: El Enemigo Chardonnay, El Enemigo Cabernet Franc, El Enemigo Malbec, El Enemigo Bonarda, Gran Enemigo Blend, Gran Enemigo Single Vineyard Agrelo y Gran Enemigo Single Vineyard Gualtallary.

Meu parceiro de empreitada, o jornalista mendocino Esteban Dacuña, não sabia por onde começar a degustação. Provamos TODOS os vinhos

Meu parceiro de empreitada, o jornalista mendocino Esteban Dacuña, não sabia por onde começar a degustação. Provamos TODOS os vinhos

O almoço custa $470 com um menu de quatro passos. A harmonização é à parte (que pode ser feita também sem o almoço) e vai de $195 a $850.

Contato e reservas:
Videla Aranda, 7008, Chachingo, Cruz de Piedra, Maipú – Mendoza
Tel: +54 9 261 697 4213
reservas@casaelenemigo.com

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