Era um sábado daqueles tão quentes que a fome estava em segundo plano. Por isso o alívio de entrar naquela casa em meio a um amplo gramado em Três Coroas – o ar condicionado fez a vida mudar pra melhor naquele instante.
O Espaço Tibet tem essa qualidade: muda a vida. Se tivermos olhos e ouvidos atentos. Olhos para o lugar, suas cores, seus detalhes que nos levam pra outro país.
E ouvidos para escutar as histórias de Ogyen Shak. Chef do restaurante e mestre em pinturas de templos desde pequeno, saiu do Tibete como refugiado e passou pela Índia e São Paulo até vir parar no Templo Budista de Três Coroas. Encontrou a gaúcha Adriana, com quem casou, e juntos abriram o Espaço Tibet, onde servem receitas tradicionais. Em um ambiente incrível, com jardins cuidados e desenvolvidos pelo próprio Ogyen.
Ogyen está há oito anos no Brasil. Aos 16 fugiu do Tibete, dominado pela China comunista, em uma caminhada de quase dois meses pelas montanhas congeladas em direção à Índia. O pai prometeu: “enquanto eu viver, vocês terão condições de estudar a cultura e a religião de vocês”. Numa madrugada, pagou para atravessadores levarem seus filhos até o país vizinho – onde teriam liberdade. Algum tempo depois, pai e mãe também seguiram para a Índia. Ogyen nunca mais viu os tios, os avós e a casa onde cresceu:
– Vocês no Brasil reclamam do seu país. Mas eu não tenho país. Não tenho mundo. Preciso fechar uma porta para ter meu mundo. Não sinto nada quando vejo fotos dos parentes que nasceram depois que me fui, porque não toquei neles, não tomei chá com eles – define, na simplicidade peculiar do tibetano.
A travessia pelas montanhas congeladas foi árdua. Usando apenas chinelos, chegou na Índia e teve que amputar os dedos de um dos pés. Tinham congelado. Teve mais sorte que três dos seus parceiros de travessia, que morreram. Uma moça, lembra, perdeu a vida sobre o gelo:
– O sangue foi congelando dentro dela e ela abriu os braços. Ficou lá, assim. Tivemos que deixá-la e continuar caminhando.
Outra não seguiu a orientação de rolar sobre a neve fofa e decidiu caminhar. Caiu em um buraco. Os colegas de caminhada estenderam uma corda feita com as roupas que vestiam. Quando ela agarrou, as roupas congeladas quebraram e ela caiu mais para o fundo. Não tinham como salvá-la.
Quando finalmente chegou na Índia, ficou internado um ano em um hospital organizado para refugiados do Tibete. O país é lar também do líder espiritual dos tibetanos, o Dalai Lama, perseguido pelo regime chinês.
Apesar de tudo que passou, Ogyen não tem raiva dos vizinhos: “É preciso separar o sal do açúcar nessa vida. Os chineses não são a mesma coisa que a política chinesa. O povo chinês é meu irmão”.
E essa candura do chef tibetano transparece nos pratos feitos com carinho e cuidado. E pra quem acha que budistas são necessariamente vegetarianos, olha esse prato chamado “Racha”.
É o mais pedido no restaurante. Receita do pai de Ogyen, é um pernil de cordeiro com molho de cravo. Tenro, suculento, maravilhoso. Vem acompanhado de arroz branco flambado na manteiga com castanhas de caju picadas, uva passa e gergelim preto. As batatas cozidas são seladas na manteiga com ervas finas.
Ah, sim, sobre ser vegetariano? O próprio Ogyen responde:
– O budista diz: se é vegetariano, parabéns. Se não é, parabéns também. O que importa é que esteja mantendo e respeitando o que o próprio corpo precisa.
Simples, né?
Deixa eu mostrar mais. Olha só como nos receberam. Chá de boas-vindas.
E o coquetel de boas-vindas. É sem álcool, mas eles fazem com vodka se o cliente quiser. É uma mistura de polpa de maracujá, kiwi, morango, abacaxi e pêssego, preparada lá no restaurante mesmo.
Sério, é tão delicioso e nutritivo que já vale por uma refeição.
Oi?
Não, com os pratos de lá, não vale não. Prepare espaço.
Olha a entrada: o prato mais típico tibetano. Três tipos de momo: de carne, de batata e de legumes.
E não acabou. Depois do prato principal (o cordeiro da foto lá de cima), veio a sobremesa. Não sou aquela fã de doces, mas já descobri que adoro sobremesas que incluam frutas. Banana, de preferência. Essa aqui é incrível:
Esse é o Shintok Tse, purê de banana com frutas secas e calda de caramelo com sorvete.
Os preços são acessíveis. Cada prato serve muito bem duas pessoas (escolha uma entrada também).
Não cansei de tirar fotos. O colorido, o clima, a vibe incrível, tudo chama a atenção.
Sou eu, ou o Dalai Lama é uma simpatia? Vejo um olhar de menino nele.
Não deu pra aproveitar o deck porque era um dia muito quente, atípico. Mas vai dizer que não é romântico? Dica: tem muita gente que vem jantar aqui e aproveita pra pedir seu/sua amado/amada em casamento!
O lugar também tem uma loja de produtos tibetanos. Como está difícil a importação, alguns vêm da China.
Aproveitei pra aparecer nessa foto, claro!
Os desenhos dessas xícaras são feitos pelo próprio Ogyen. São os oito símbolos auspiciosos tibetanos budistas. Esse do meio é o Nó do Infinito Amor, ou Nó da Sorte, Nó Místico ou Nó da Longa Vida. Ele lembra que a existência não tem começo nem fim, é um ciclo de nascimento e renascimento. Ele também mostra o entrelaçamento dos seres através do amor – todos fazemos parte do todo. Achei tão bonito que comprei para mim e para dois amigos queridos que faziam aniversário. Amor nunca é demais, não acham?
Podia falar muito mais do que senti naquele almoço e naquela tarde. Mas acho que já provoquei vocês. Vão até lá. Provem da comida e das histórias de Ogyen. Desafiem-se a sair da zona de conforto, a repensar onde estamos e o que fazemos aqui. E garanto – vamos reclamar bem menos de tudo quando lembrarmos o caminho que esse homem simples e apaixonado pela vida percorreu.
ESPAÇO TIBET TASHI LING – TRÊS COROAS
Endereço: Rua Alagoas, 361, Bairro Águas Brancas – Três Coroas – RS
Telefone: (51) 3546-5763 e (51) 9678-3184
Horários
Quartas e quintas das 11h45h às 15h
Sextas das 11h45h às 15h e das 20h às 23h
Sábados das 11h45 às 16h e das 20h às 23h
Domingos e feriados das 11h45h às 16h
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