O que parece ser uma celebração ou, até mesmo, uma saudação, na verdade não passa de uma grande ironia. Gilberto Gil, à frente de seu tempo, escreveu “Aquele Abraço” no ápice da Ditadura Militar. Lançada em 1969, a música segue sendo um sucesso nos dias atuais. A faixa possui diversas referências à Ditadura. Na época, Gilberto Gil e Caetano Veloso ficaram presos por quase dois meses em Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Os artistas foram soltos em uma quarta-feira de cinzas. Após cumprirem certo período em prisão domiciliar, exilaram-se em Londres. Mas, antes de ir para Europa, no trajeto do Rio até à Bahia, Gil escreveu “Aquele Abraço”, um dos maiores hits de todo seu repertório.

A MENSAGEM POR TRÁS DA LETRA

Na época da Ditadura, a censura só liberava músicas positivas sobre a cidade. Assim, surgiu a primeira estrofe da canção: “O Rio de Janeiro continua lindo“. Logo na sequência, o trecho já traz o primeiro sarcasmo da letra: “O Rio de Janeiro continua sendo“. Ou seja, apesar de lindo, o Rio continua sendo o Rio — que, apesar de toda beleza, também era lar de muitos horrores, tragédias e violências.

Outro trecho irônico é exatamente o que dá nome à música: “Aquele abraço”. Esta era a forma que os soldados cumprimentavam o cantor enquanto ele estava preso, por isso o “Alô, alô, Realengo”.

Mais um detalhe curioso: aqui no sul, o Gil é gremista, mas o seu time do coração, na verdade, é o Fluminense. Naquele ano, o Flamengo perdeu o campeonato carioca para o tricolor. Dessa forma, o “Alô, torcida do Flamengo, aquele abraço” é para cutucar o time rival que perdeu o título.

GIL CONTA COMO ESCREVEU “AQUELE ABRAÇO”

A música foi lançada nos shows de despedida do Brasil, antes de seguir para Londres. Essas apresentações foram registradas no disco Barra 69″, gravado ao vivo. Nele foi registrada, na última faixa, a primeira gravação de “Aquele Abraço”.

 “(…) Meses depois de solto, eu vim ao Rio tratar da questão da saída do Brasil com o Exército. Na manhã do dia da minha volta pra Salvador, fui visitar Mariah Costa, mãe de Gal; ali, na casa dela, eu ideei e comecei Aquele Abraço. Finalmente eu ia poder ir embora do país e tinha que dizer bye bye; sumarizar o episódio todo que estava vivendo, e o que ele representava, numa catarse. Que outra coisa para um compositor fazer uma catarse senão numa canção?(…)”.

Voltando a Salvador, ainda no avião, Gil rabiscou os primeiros versos num guardanapo, enquanto ia mentalizando a estrutura.

“(…) Tanto que é uma melodia muito simples, quase um blues. Como eu não dispunha de instrumento, tive que recorrer a uma estrutura fácil para guardar na memória. Quando cheguei à Bahia, eu só peguei o violão e toquei (…)”, lembrou o compositor.

PRÊMIO RECUSADO

Em agosto de 1970, o Museu da Imagem e do Som — braço cultural do regime — premiou a canção. Gil, exilado na Inglaterra junto com Caetano e a família, abdicou do prêmio por meio do artigo “Recuso + Aceito = Receito”, publicado no tabloide Pasquim:

“- Se ele [o Museu] pensa que com ‘Aquele Abraço’ eu estava querendo pedir perdão pelo que fizera antes, se enganou. E eu não tenho dúvida de que o museu realmente pensa que ‘Aquele Abraço’ é samba de penitência pelos pecados cometidos contra a sagrada música brasileira’. 

Os pronunciamentos de alguns dos seus membros e as cartas que recebi demonstram isso claramente. O museu continua sendo o mesmo de janeiro, fevereiro e março: tutor do folclore de verão carioca. Eu não tenho porque não recusar o prêmio dado para um samba que eles supõem ter sido feito zelando pela ‘pureza’ da música popular brasileira. Eu não tenho nada com essa pureza. 

Tenho três LPs gravados aí no Brasil que demonstram isso. E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que ‘Aquele Abraço’ não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar’. Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil. Por isso talvez Deus tenha me tirado de lá e me colocado numa rua fria e vazia onde pelo menos eu possa cantar como o passarinho.

As aves daqui não gorgeiam como as de lá, mas ainda gorgeiam.”

AQUELE ABRAÇO para todos que leram até o final mais uma matéria do quadro “Além da Letra”, da 102.3, a melhor playlist do rádio. 😉

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