Como uma música sem letra pode ser um dos maiores sucessos do rock mundial? Isso é “The Great Gig in the Sky”, faixa que demonstra toda a genialidade de Pink Floyd. O single encerra o lado A do LP original do disco “The Dark Side of the Moon”. Nos bastidores, a história é longa. Mas acredite: vale a pena ser lida.

O hit é composição do tecladista Richard Wright, mas a dona da voz marcante que tornou a obra um clássico do rock é a cantora Clare Torry.

O objetivo da música era criar um “êxtase religioso” sobre a morte, contando com vozes sobre o instrumental, que incluiriam trechos da Bíblia e, até mesmo, vozes de astronautas da Nasa em missões espaciais. Na teoria, a ideia era perfeita. Mas, na prática, não ficava tão boa quanto a banda queria. A partir dessa frustração, o engenheiro de som Alan Parsons sugeriu a voz de Clare.

Clare Torry: a voz de “The Great Gig in the Sky”

Durante as gravações, Parsons sugeriu que “The Great Gig in the Sky” contasse com uma voz feminina por cima do arranjo. Porém, não qualquer voz feminina. Alan foi certeiro: a voz de uma jovem cantora britânica chamada Clare Torry. Totalmente desconhecida pela banda, mas altamente recomendada pelo especialista.

O dia da gravação

Depois de adiar a gravação por ter ingressos para um show de Chuck Berry na data original, Clare Torry foi recebida no estúdio pelos músicos do Pink Floyd. O guitarrista e vocalista David Gilmour ficou encarregado de explicar a ela o que deveria ser feito. O problema é que nem eles sabiam, conforme recordou a cantora em entrevista.

“Eu cheguei e eles disseram ‘bem, estamos fazendo esse álbum e tem essa faixa – e nós realmente não sabemos o que fazer com ela’. Eles me disseram que o álbum era sobre nascimento, morte e tudo o que tem entre os dois. E eu disse ‘bem, toquem a música para mim’. Eles tocaram e eu disse: ‘bem, o que vocês querem?’. E eles disseram: ‘nós não sabemos’.”

Como quem sabe faz ao vivo, Clare improvisou. Já que não havia letra, ela começou a cantar palavras genéricas como “oh baby”. Logo, Gilmour a interrompeu e pediu notas mais longas. Após algumas tentativas, a artista teve a ideia que ouvimos na versão final, ao pensar em sua voz como se fosse um instrumento musical a mais. Essa sacada de Clare foi o que trouxe a melancolia presente no vocal ao longo de toda música.

Ao todo, foram registrados apenas dois takes, com um terceiro interrompido pela própria Torry, que achou que já soava repetitiva. Ela recebeu seu pagamento de 30 libras pelo trabalho e foi para casa achando que a sua voz não seria usada no álbum.

A cantora não mensurava a grandiosidade do que havia feito

Mal sabia ela que a sua performance havia impressionado a banda, embora ninguém tenha se manifestado na hora. Aliás, todos os músicos desconfiavam que ela fosse, de fato, a pessoa certa para o trabalho… até Clare começar a cantar.

“Clare Torry realmente não parecia adequada. Ela foi ideia de Alan Parsons. Queríamos colocar uma garota lá, gritando orgasticamente. Alan já havia trabalhado com ela anteriormente, então demos uma chance. E ela foi fantástica. Tivemos que incentivá-la um pouco. Demos a ela algumas dicas dinâmicas: ‘talvez você queira fazer esta parte silenciosamente e aquela parte mais alto’. Ela fez alguns takes e depois compilamos a performance final de todas as partes. Não foi feito de uma vez”, recordou Gilmour em entrevista à Rolling Stone.

A gravação despretensiosa virou sucesso mundial

Nem mesmo Clare sabia que a sua voz seria, realmente, incluída no disco. A cantora só teve a confirmação de que seu trabalho havia sido usado quando viu o disco em uma loja e encontrou o seu nome nos créditos. Torry ainda cantou a música em um evento beneficente ocorrido em novembro de 1973, meses após o lançamento do álbum.

Enquanto o disco se tornava um clássico absoluto em popularidade e números, a vida da artista continuava a mesma. Ela seguiu trabalhando como backing vocal de estúdio, em músicas de artistas como Meat Loaf, Dolly Parton, Culture Club, Olivia Newton-John, The Alan Parsons Project, entre outros. Participou também de turnês solo de Roger Waters nos anos 1980, além dos álbuns “When the Wind Blows” e “Radio K.A.O.S.”.

No entanto, em 1990, veio a grande surpresa. Pink Floyd convidou a artista para cantar em um show icônico em Knebworth. Ela não trabalhava com a banda desde 1973. Assista a performance:

A parceria amigável acabou em guerra judicial

A parceria que, até então, era amigável, tornou-se um processo judicial. Em 2004, após se aposentar temporariamente da música, Clare Torry processou o Pink Floyd por direitos autorais em relação aos vocais de “The Great Gig in the Sky”.

Os valores não foram divulgados, mas houve um acordo extrajudicial que concedeu à artista honorários retroativos, além de ser creditada como compositora da música desde então. Ao julgar pelos comentários dela em 2005, o motivo do processo parece ter sido financeiro.

“Durante vários anos, as pessoas me perguntaram sobre isso. Cheguei a pensar no assunto, mas as custas seriam altíssimas. Tive que engolir, não queria ficar com fama de ‘criadora de caso’. Quando me retirei do meio musical, reconsiderei”, afirmou Clare.

Em 2006, Torry ainda lançou um álbum intitulado “Heaven in the Sky”, que consiste em uma coletânea de músicas gravadas por ela entre os anos 60 e 70. Pouco se ouviu falar sobre ela depois disso.

Nos holofotes ou não, uma verdade é absoluta: Clare Torry foi uma das principais responsáveis por tornar “The Great Gig in the Sky” uma das maiores obras musicais de todos os tempos.

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