[CONTÉM SPOILERS]

Em 1982, Blade Runner levantou questões existenciais e éticas que são relevantes até hoje. Enquanto várias outras histórias de inteligência artificial traziam máquinas de material sintético, o clássico de Ridley Scott traz para o audiovisual a ideia do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), de Philip K. Dick. Em Blade Runner, os “androides” não são corpos metálicos, cheios de nanochips, fios e mecanismos artificiais. Eles são orgânicos. Eles dormem, se alimentam, podem sangrar, suar, chorar e morrer.

Essa perspectiva levanta novos questionamentos sobre a inteligência artificial e o poder de criação do ser humano. Se a criatura é, em termos práticos, idêntica a nós, eles não deveriam ter os mesmos direitos? Podemos escravizá-los? Pois, se não bastasse eles serem orgânicos, eles também são dotados de memórias implantadas. Essas memórias fazem eles serem quem são, fazem eles sentirem o que sentem. Desse modo, a diferença entre replicantes e humanos é muito tênue, e era necessário um intenso teste psicológico (o teste Voight-Kampff) para determinar a distinção.

Além dessas e outras questões, o principal é a iminência da morte. Os replicantes são feitos para durarem apenas 4 anos. Alguns deles, no entanto, invadem a Terra – onde são proibidos – e procuram seu criador para viver mais. Esse instinto de sobrevivência e prolongamento da vida é o desejo da humanidade desde que tomamos conhecimento do que significa a morte. No entanto, nós não sabemos quando vamos morrer; eles sabem. Saber a data da morte faz a vida dos replicantes muito diferente. E se nós soubéssemos a nossa, o que faríamos?

Blade Runner 2049 não repete essas questões, ele levanta novas e igualmente profundas. A inteligência artificial e a fragilidade da vida continuam sendo centrais na trama, mas os assuntos são abordados por outras perspectivas, levantadas graças a evoluções narrativas na história. O novo Blade Runner, felizmente, não repete o enredo do original. Apesar de, a partir dos trailers, muitas especulações terem surgido comparando as duas tramas, na sala de cinema o diretor Denis Villeneuve nos entrega gratas surpresas.

A seguir, entraremos na discussão com spoilers sobre as novas questões abordadas no filme. Se você ainda não assistiu, pare por aqui e confira o trailer abaixo:

Primeiramente, gostaria de registrar a minha felicidade de não ter visto no trailer as maiores surpresas que tinham no filme. A personagem holográfica Joi (Ana de Armas) foi mostrada nas divulgações sem a transparência, para que esse fato (muito importante) só fosse descoberto no cinema. O fato do agente K ser um replicante também se manteve sigiloso até a estreia.

Mas além dessas informações valiosas, que mudam toda a perspectiva do filme e rompem com as expectativas que vinham se formando (e o medo da sequência repetir a fórmula do filme de 1982), uma cena que tinha muito potencial de vender o filme, mas que foi corajosamente guardada para surpreender o espectador, foi o “retorno” de Rachael. Se os trechos retirados do filme anterior que foram mostrados aos poucos na narrativa ainda não tinham feito os fãs chorarem, essa cena foi derradeira. Não há como não se arrepiar com a entrada da personagem pela sala e seu rosto saindo das sombras. Por alguns instantes você até esquece da magia do cinema e se convence de que aquilo é real. E quase foi, se não fosse um detalhe: os olhos dela eram verdes.

Mas vamos às reflexões!

Os replicantes originais de 2019 não são mais fabricados, e aqueles que restaram são caçados e “aposentados” pelos blade runners. Toda essa mudança foi graças ao grande black out de 2022, obra de replicantes rebeldes que entraram ilegalmente na Terra e explodiram as redes elétricas da costa Oeste dos Estados Unidos. Os humanos, então, resolvem proibir a criação de novos replicantes e eliminar os existentes, levando ao fim da corporação Tyrell. O curta-metragem em animação Blade Runner 2022: Black Out (2017), dirigido por Shinichiro Watanabe, pode ser visto abaixo:

O evento levou Niander Wallace (Jared Leto) a criar, anos mais tarde, a criar um novo modelo de replicantes, aprovados para produção. Esse novo tipo tem a característica de ser totalmente obediente, independente do instinto de sobrevivência e livre-arbítrio. Eles já não têm mais o prazo de 4 anos. O tempo de vida deles pode ser definido por seus donos.

Memória

Os novos modelos, no entanto, ainda recebem memórias artificiais. O dilema de agente K durante o filme é, justamente, entender se suas memórias são forjadas ou reais. Até então, ele estava convencido de que era um replicante. Sua resistência e força confirmam esse fato para o espectador. De fato, não há como ele ser um humano. Mas, como saber se uma memória é real? Ela está na sua cabeça, e pronto. Se o seu cérebro acredita que é real, não há neurônio que confirme a sua falsidade.

A memória é aquilo que nos faz ser quem somos. É ela que cria nossa identidade. É ela que diferencia nossos pensamentos dos pensamentos alheios. Um conjunto de memórias faz o ser.

“Nos últimos anos, a investigação no domínio da memória tornou central a ideia de que uma vivência, por mais simples que seja, pode influenciar de múltiplas formas o nosso comportamento ou pensamento, sem que disso estejamos conscientes” (Pedro Albuquerque, professor de psicologia).

Quando o agente descobre que aquelas memórias são reais, toda sua vida é colocada em xeque. Ele passa a se entender como alguém que nasceu, e não que foi criado artificialmente. Ao mesmo tempo, há o conflito de sua missão. Sua chefe o ordenou a matar o filho dos replicantes, e ele acabou descobrindo que caçava a si mesmo.

O cavalo de madeira é o símbolo da sua memória. Quando ele o encontra, lá está a confirmação de que tudo o que julgava artificial era real. De forma semelhante, o unicórnio de origami, que se refere aos sonhos de Deckard, é a confirmação (?) de que ele era um replicante, em Blade Runner (1982). A discussão aqui, no entanto, é outra. K e nós já sabemos que ele é um replicante, assim como sabemos que os novos replicantes não têm prazo de validade definido. A grande dúvida pousa sobre seu passado: ele existiu ou não?

A partir disso começamos a acreditar que ele tenha nascido. Joi inclusive dá um nome, que ele nunca recebeu. Agente K passa a ser Joe. A mudança de nomenclatura acompanha uma mudança psicológica no personagem. Ele antes não tinha nada a perder, não tinha interesse pessoal nas missões, era apenas um inteligência artificial pronta para servir. Agora ele se enxerga como “real”. Começa a dar atenção aos interesses próprios.

O interessante é que essa mudança não acontece por causa de alguma programação ou algo parecido. São apenas os eventos que afetam sua percepção sobre si mesmo, o que levanta um questionamento: se um replicante passar a acreditar que suas lembranças são reais e que ele nasceu em vez de ser criado, sua “programação” que o obriga a obedecer será “desativada”? Isto é, será que ele tem vontades próprias, que são apenas suprimidas de alguma forma? E nós, humanos, somos limitados por nossas percepções de nós mesmos?

No fim, Joe descobre que as memórias são reais, mas não são dele. Joe é um clone da real filha dos replicantes, que foi dada como morta para a proteção dela e da rebelião dos replicantes. Mais uma vez, isso vem acompanhado de uma mudança na sua postura. Ele passa a se dispor pela missão, pelo bem maior, e sacrifica sua vida para proteger a causa. A importância que acreditou ter o cegou para os fatos. As pistas de que ele era o clone sempre estiveram lá, mas a verdade é que nós sempre queremos acreditar que somos especiais.

Inteligência Artificial

Uma personagem fascinante é Joi, a esposa holográfica de K/Joe. A inteligência artificial e sua relação com com o protagonista nos lembram inevitavelmente de Her (2013). Samantha é programada para identificar a personalidade do usuário e responder da maneira que ele mais deseja. Da mesma forma, Joi é vendida como “o que você quer ver, o que você quer ouvir”.

Na primeira cena do casal, K dá um presente para Joi, que possibilita que ela possa sair da casa. Ela então, pela primeira vez, sai para a rua e “sente” a chuva cair sobre sua pele. As reações de um computador normal são sempre forjadas e premeditas, mas uma inteligência artificial, mesmo que de computador, funciona de maneira diferente. Eles de fato aprendem coisas novas, se adaptam às situações e geram novas memórias. Se eles são capazes de sentir ou não, já é uma outra questão, que abordaremos daqui a pouco. Mas voltando ao aprendizado, ela conhece a chuva naquele momento. Talvez já soubesse o que é por informações descritivas, mas ela jamais esteve na chuva. Ela possui uma “mente” capaz de aprender e experienciar coisas novas.

O psiquiatra e cibernético Warren McCulloch afirma que o cérebro humano, quando nasce, possui uma pouca variedade de conhecimentos inatos e, fora eles, todo o restante não passa de uma rede neuronal aleatória. Os neurônios apenas possuem a capacidade de conectar-se, mas ainda não receberam qualquer estímulo que os faça exercer sua função. É justamente após o nascimento e em contato com o mundo que se dá o processo de aprendizagem, isto é, a conexão de neurônios, agora cada vez menos aleatórias. Esses conjuntos de estímulos são aquilo que forma a configuração dos neurônios; estímulos diferentes produziriam conexões diferentes. Para McCulloch, uma rede circular poderia, através de uma estrutura quase vazia, mas com a potencialidade de realizar conexões, aprender tal como nós aprendemos. Dependendo do aprendizado, a rede poderia inclusive desenvolver capacidades de predição, intencionalidade e livre-arbítrio.

Joe se convence de que Joi tem sentimentos genuínos, mas nós, espectadores, não temos como confirmar isso. Em alguns momentos pode parecer que sim, mas também pode ser tudo simulação, já que sua programação a faz dizer e fazer tudo o que ele quer, ou precisa. Depois que ela morre (ou é desativada), Joe vê sua propaganda em forma de holografia gigante. Naquele momento, nos parece que ele entendeu que o amor dela não era verdadeiro. Que todos aqueles que comprassem o produto se sentiriam amados, mas no fundo era tudo código.

Aliás, essa questão levanta a clássica pergunta: o que é o amor? Se ele não passa de conexões neuronais, podemos perfeitamente aceitar que conexões elétricas em um chip podem também ser amor. Se ela é programada para isso, como podemos saber se ela não ama de verdade? Talvez amor seja justamente o sentimento que guie sua inteligência artificial. Assim como ele, que foi criado e programado, pode não ter amado de verdade ela. O que o faz crer que seus sentimentos são reais são suas memórias. Ora, Joi também tinha memórias. E nós, humanos, também não sentimos justamente por causa de nossas memórias, sejam elas reais ou não?

Criação

O ser humano nutre o desejo constante de criar. Ser criador significa estar no poder, significa equiparar-se com um deus. Nós queremos ser donos do nosso próprio mundo. Criamos que as coisas sejam nossas. Criamos porque não temos controle sobre a natureza, mas podemos ter controle sobre o que nós mesmos projetamos.

No primeiro filme de Blade Runner, Tyrell é o criador. Suas criaturas, os replicantes ilegais na Terra, o procuram para exigir mais tempo de vida. Somente ele teria poder de dar isso a eles. Ele detém o dom da vida. Na sequência, a figura do criador está centrada em Wallace. O novo personagem, diferente de Tyrell, parece ser ver muito mais próximo de uma divindade. Ele salvou a humanidade da fome, criou novos replicantes e, agora, quer dar um novo passo: criar seres que criam seres. Ele pretende dar vida a replicantes capazes de ter filhos.

As poucas falas que tem no filme são geralmente rodeadas de referências bíblicas. Quando sua assistente Luv (Sylvia Hoeks) entra em sua sala (que parece ser quase sagrada), ele espera que ela, como o Anjo do Senhor, anuncie a gravidez do filho salvador, o primeiro replicante nascido, que mudará o mundo para sempre, fazendo a referência bíblica:

Ela dará à luz um filho e lhe porá o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos pecados deles (Mateus, 1:21).

Quando Wallace fala de Racheal, ele também se volta para a Bíblia. Raquel era esposa de Jacó e irmã de Lea. Enquanto a irmã deu à luz quatro filhos, Raquel era estéril, mas queria muito ter filhos. Foi por milagre divino que seu útero deixou de ser estéril e ela, inesperadamente, ficou grávida. No entanto, Raquel morreu no parto. A história se repete em Blade Runner 2049, quando Racheal, “milagrosamente”, engravida e então morre ao dar à luz.

O fato dos replicantes serem criados por humanos envolve inúmeros dilemas éticos. Se ele é criado por alguém, do zero, artificialmente, a pessoa não teria direito de propriedade sobre o replicante? Ele pode ser considerado um bem? Ele, confirme observa o próprio Joe, tem alma? E quanto a Joi – ela é uma propriedade ou um indivíduo? Qual é a essencial diferença entre humanos, replicantes e hologramas como Joi? Dentro de todas essas perguntas, a trama torna tudo ainda mais complicado colocando dois novos elementos: os clones e os replicantes nascidos. Se um humano é proprietário de um replicante, os filhos desse replicante também são sua propriedade? Ou são propriedade dos pais? Ou eles não são propriedade, e sim indivíduos?

Esses dilemas éticos são tensionados, mas não respondidos. Joe passa o filme todo oscilando entre ora se entender como real, ora como artificial.

E você, o que acha de todas essas questões (e várias outras não abordadas aqui) presentes em Blade Runner 2049?